Parte 2 — Afonte Jornalismo de Dados

Iniciativa liderada por Taís Seibt trabalha com reportagens, produtos e eventos relacionados ao uso de dados inclusive na área da Comunicação

Referência nas pesquisas em fact-checking e desinformação no Brasil, a doutora em Comunicação pela UFRGS, Taís Seibt, trilhou o caminho do empreendedorismo ao longo do doutorado. Também foi por meio dos estudos em jornalismo e fact-checking que recebeu, em 2020, a menção honrosa no Prêmio Capes com a tese Jornalismo de Verificação como tipo ideal: a prática de fact-checking no Brasil.

Taís Seibt é fundadora da Afonte, que atua em frentes relacionadas ao uso de dados
(Foto: Matias Lorenzoni)

Como parte da tese de doutorado, desenvolveu o projeto do Filtro Fact-checking, inicialmente uma extensão universitária que, em 2018 se transformou em empreendimento de jornalismo profissional, com suporte da ONG Pensamento e da Agência Pública. A partir desse projeto, Seibt participou do programa Despertar Empreendedor da UFRGS.

Em março de 2019, Afonte Jornalismo de Dados foi criada com o objetivo de produzir conteúdo com e sobre dados na comunicação. Conforme Seibt, isso se concretiza a partir da realização de cursos e palestras em diversas instituições; organização de eventos próprios, como a Maratona de Dados, ou franquias, como Open Data Day e Cerveja com Dados; produção de conteúdo didático, a exemplo do projeto “Postar ou Não?”, em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre; Também se destacam os trabalhos jornalísticos durante a cobertura das eleições 2020 no Matinal Jornalismo; além da publicação de artigos e entrevistas com fontes de referência na área.

A iniciativa, em vigor após o fim do doutorado, surgiu como desdobramento da tese.

“Uma das questões que observei foi a dificuldade tanto para obter quanto para analisar corretamente os dados necessários à checagem, e isso me levou à necessidade de atacar, primeiro, esse problema. Para que se possa aceitar o fact-checking e o jornalismo de forma geral como instrumentos de combate à desinformação, é preciso ampliar o conhecimento dos jornalistas e da população em geral sobre dados abertos e transparência pública.”, explica a pesquisadora.

Na avaliação de Seibt, faltava uma iniciativa local, na região de Porto Alegre, que fosse capaz de construir pontes entre jornalistas, estudantes, professores de jornalismo, poder público, veículos de comunicação e a comunidade de dados. “É um espaço de referência que estamos buscando conquistar”, justifica.

Leia a seguir alguns trechos da entrevista:

De acordo com sua experiência, há espaço para empreender na área da Comunicação? Como encontrar um nicho de mercado?

Espaço há, mas não é simples desenvolver um modelo de negócio sustentável em comunicação. Afonte não é, ainda, exatamente um empreendimento, é uma iniciativa que corre em paralelo com outras atividades profissionais e acadêmicas, com colaboradores eventuais e financiamentos pontuais para projetos específicos. Estamos amadurecendo esse processo de identificação de nichos de mercado e oportunidades de crescimento para consolidar o projeto como um empreendimento de fato.

Quais são as principais dificuldades de ser autônomo hoje? E o que muda em tempos de pandemia?

A imprevisibilidade é uma das dificuldades, porque não temos aquela comodidade do recebimento fixo mensal que um emprego formal te dá. Não ter benefícios trabalhistas é outro fator, ao mesmo tempo em que é preciso dar conta de taxas fixas e impostos para manter um CNPJ. Então uma lição fundamental é aprender a economizar e, num segundo momento, aprender também a investir para criar mecanismos de reserva. Essa necessidade financeira pode, muitas vezes, levar a um outro risco de ser autônomo, que é trabalhar demais. Administrar as demandas e, às vezes, dizer não, é uma sabedoria. Na pandemia tudo está mais difícil para todos nós, seja por ofertas de trabalho e recursos mais escassos, seja pela pressão emocional nesse contexto — e tudo isso em home-office! (risos)

Quais são as principais dificuldades encontradas no Brasil de hoje após a conclusão do doutorado? O que você diria para quem está concluindo o doutorado?

Ainda que seja uma formação de cunho acadêmico, ou seja, para formar pesquisadores, em termos de colocação profissional é preciso também pensar no doutorado como um diferencial de qualificação no mercado. Concursos públicos estão escassos e universidades privadas estão com dificuldades financeiras, ao mesmo tempo em que temos muitos programas de pós-graduação disponíveis. Isso cria uma dificuldade de absorção dessa comunidade nos cargos, digamos, tradicionais (professor, pesquisador). Atuar em projetos de extensão, promover o diálogo entre academia e mercado como parte de atividades de pesquisa no doutorado são alguns instrumentos possíveis para não se distanciar de oportunidades que possam surgir ou mesmo serem “inventadas” fora da academia. E nada disso é descartável mesmo se o caminho for pelas vias mais tradicionais de uma carreira acadêmica, até porque nossa área é muito dinâmica e é preciso acompanhar as movimentações do mercado.

Sabemos que, ao menos neste momento, existe um quantitativo limitado de vagas para docentes nas universidades. Você acredita que se tornar um doutor empreendedor é uma tendência em nossa área?

Não apenas para doutores, mas comunicadores de modo geral. Minha orientadora, profa. Virginia Fonseca, costumava falar em jornalistas que estão “inventando” seu trabalho. É claro que tem muita precarização nesse cenário, não se pode também romantizar o discurso do empreendedorismo. Quando as redações tradicionais entraram em crise, a carreira acadêmica era vista como perspectiva por alguns jornalistas. Hoje, como comentei na questão anterior, ter mestrado ou doutorado não garante colocação em universidades. Então é preciso mais do que títulos ou experiência, é preciso inovar, acompanhar as transformações do mercado e colocar o nosso conhecimento nesse jogo de forma criativa e competitiva.

De que forma o conhecimento obtido ao longo do doutorado no PPGCOM/UFRGS preparou você para a criação da Afonte?

Acredito que todas as leituras de estudos de caso, durante a busca de referências na pesquisa, foram de alguma forma inspiradoras. Outro ponto importante foi o networking, tanto acadêmico quanto profissional, por meio de congressos e entrevistas com pessoas diretamente envolvidas com iniciativas inovadoras.

Até o momento, quais são os principais aprendizados e desafios nesta jornada empreendedora?

Como comentei antes, não considero Afonte exatamente um empreendimento (ainda), e o desafio é exatamente esse, criar um modelo de negócio que possa sustentar essa iniciativa. Mas um dos grandes aprendizados é sobre colaboração. Sem grandes pretensões, conseguimos colocar em prática projetos de impacto e ter algum retorno, graças a parcerias. Eu realmente acredito que esse é um caminho para negócios em comunicação, mais organizações de menor porte trabalhando em cooperação umas com as outras. Isso é saudável para o ecossistema porque os recursos financeiros ficam menos concentrados em uma só corporação e ainda possibilita que cada organização mantenha o foco na sua especialidade. Ninguém vai ficar milionário desse jeito, mas mais gente vai ter oportunidade de fazer o que sabe (e gosta) sem precisar trabalhar de graça. Afonte está seguindo por esse caminho e, embora eu seja suspeita para falar, acho que está dando certo.

Que dicas você daria para quem deseja empreender? Por onde começar?

O que fiz foi participar de muitas oficinas, workshops e palestras sobre esse assunto, muitas delas em EaD no ano passado. Em função da pandemia, várias instituições abriram seus cursos, o Sebrae é uma delas, tem muitas aulas online que ajudam a pensar novos negócios. Especificamente para negócios em Jornalismo, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) costuma ter formações sobre isso no congresso anual e eventualmente oferece cursos online, agora o IDP também está oferecendo diversas oficinas gratuitas à distância. E tem ainda o Knight Center e o Google News Initiative com vários cursos online gratuitos. Além dos cursos, eu diria que é muito importante o networking, sem dúvida a rede de contatos foi o que mais me ajudou e continua ajudando a colocar Afonte no mundo. Também observar o mercado, pesquisar mesmo, e aí talvez esteja a vantagem do “doutor empreendedor”, porque como pesquisadores observamos os movimentos e buscamos interpretar mudanças e tendências, isso pode se converter em vantagem competitiva. Conhecimento é fundamental para uma boa estratégia.

Taís Seibt é jornalista com graduação e mestrado na Unisinos e doutorado na UFRGS. Atualmente, é professora do curso de Jornalismo da Unisinos e do mestrado profissional em Jornalismo de Dados do IDP. Atua ainda como repórter e pesquisadora na Fiquem Sabendo, agência de dados especializada em Lei de Acesso à Informação e transparência pública. É coordenadora da Afonte Jornalismo de Dados. Em 2020, participou da coleta de dados do Índice de Transparência Covid-19, da Open Knowledge Brasil, com apoio da Fiotec. Sua tese de doutorado “Jornalismo de verificação como tipo ideal: a prática de fact-checking no Brasil”, defendida na UFRGS, recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2020. O Filtro Fact-checking, projeto derivado da tese desenvolvido em parceria com a Pensamento.org, recebeu o prêmio especial Antonio Gonzalez de Contribuição à Comunicação Social da Associação Riograndense de Imprensa em 2018. Com trabalhos na área desde 2004, foi repórter e editora em Zero Hora por mais de cinco anos e assinou trabalhos como freelancer para BBC Brasil, Agência Pública, The Intercept, O Globo, O Estado de S. Paulo e Yahoo Notícias.

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